Os processos de legitimação artística enfermam, no nosso país, de um grau de arbitrariedade não negligenciável. Se bem que este fenómeno se estenda a toda a arte contemporânea, em Portugal o risco de tal acontecer acaba por se evidenciar de modo mais agudo exactamente na medida em que o meio não mostra sinais de uma maturidade crítica que lhe permita ficar menos susceptível a fenómenos de moda, de confusão entre aquilo que é uma circunstancial visibilidade acrescida e a coerência de um corpo de trabalho que se situe à margem dessas flutuações de gosto. São inúmeros os casos de autores que viram a sua recepção crítica flutuar mediante uma conjugação de factores externos que os atrai ou repele de um putativo centro gravitacional do gosto dominante. Pensemos no errático percurso de um artista como Eduardo Batarda, várias vezes aclamado como “um dos nossos maiores”, outras esquecido num estranho limbo de não-existência pública, ainda que a sua obra se tenha vindo a construir com rara consistência no nosso panorama. O problema prende-se, essencialmente, com a pequenez do meio: dada a reduzida malha institucional que caracterizou até os anos noventa o nosso circuito, os artistas chegavam a um ponto em que os períodos pós-retrospectiva poderiam significar a entrada em períodos de ressaca em termos de visibilidade, isto é, dava a ideia de que se tinha esgotado um segmento importante daquilo que seriam os seus desígnios de carreira, o que os conduziria a um beco sem saída.
Este tipo de situação não tem, em rigor e evidentemente, nada a ver com a qualidade do trabalho, com a sua pertinência estética ou com a posição que vai construindo na interior da sua própria evolução. Servem estes considerandos exclusivamente para enquadrar uma dessas situações estranhas que tem a ver com o artista cuja exposição agora se apresenta. Na verdade, Gerardo Burmester manteve uma presença regular e singular no circuito nacional desde as primeiras aparições ainda nos anos setenta, o que lhe valeria uma justificada presença em colecções institucionais, em representações nacionais no estrangeiro ou uma igualmente merecida retrospectiva em Serralves. Contudo, foi notório um decréscimo de actividade nos últimos anos, a que correspondeu uma menor presença na discussão pública da contemporaneidade artística (sendo difícil determinar com exactidão se a primeira é consequência imediata da segunda ou vice-versa; a verdade é que este autor sempre cultivou um certo distanciamento perante as fragilidades do meio que alguns qualificariam como atitude de arrogância extrema, mas que nele corresponde a algo que determina inclusivamente as suas opções estéticas).
É neste contexto que devemos pensar a presente proposta expositiva de Gerardo Burmester. Trata-se, de facto, de um díptico expositivo distribuído por dois espaços completamente distintos na sua tipologia – o quadrado branco da galeria e um antigo espaço oficinal ainda repleto de marcas da sua anterior actividade -, que convoca para a sua apreensão elementos recorrentes no trabalho deste autor como sejam a revisitação crítica da modernidade estética, a assunção da frieza e rigor formais como factor de distanciamento do espectador, e a partilha de uma introspecção que aqui se joga num plano de uma confessionalidade irónica.
Este díptico expositivo toca, então, as margens de uma visão pendular da criação, entre o apolíneo e o dionisíaco: à frieza formalista das obras que revisitam ironicamente a abstracção modernista na Galeria, num momento que intitulou a partir de uma citação de Thomas Bernhard “O frio aumenta com a claridade”, contrapõe-se o excesso informalista e hipoteticamente confessional da instalação na Oficina, que retoma um anterior título seu “O império do aborrecimento”, agora com um II, indicativo, justamente, desse propósito de continuidade.
Assim, como nos jogos de sedução, Burmester propõe-nos uma experiência que tanto apela a uma partilha e comunhão estéticas, como no momento seguinte se impõe como barreira erigida a partir de uma estrutura onde predomina a ironia e a deceptividade.
Este tipo de situação não tem, em rigor e evidentemente, nada a ver com a qualidade do trabalho, com a sua pertinência estética ou com a posição que vai construindo na interior da sua própria evolução. Servem estes considerandos exclusivamente para enquadrar uma dessas situações estranhas que tem a ver com o artista cuja exposição agora se apresenta. Na verdade, Gerardo Burmester manteve uma presença regular e singular no circuito nacional desde as primeiras aparições ainda nos anos setenta, o que lhe valeria uma justificada presença em colecções institucionais, em representações nacionais no estrangeiro ou uma igualmente merecida retrospectiva em Serralves. Contudo, foi notório um decréscimo de actividade nos últimos anos, a que correspondeu uma menor presença na discussão pública da contemporaneidade artística (sendo difícil determinar com exactidão se a primeira é consequência imediata da segunda ou vice-versa; a verdade é que este autor sempre cultivou um certo distanciamento perante as fragilidades do meio que alguns qualificariam como atitude de arrogância extrema, mas que nele corresponde a algo que determina inclusivamente as suas opções estéticas).
É neste contexto que devemos pensar a presente proposta expositiva de Gerardo Burmester. Trata-se, de facto, de um díptico expositivo distribuído por dois espaços completamente distintos na sua tipologia – o quadrado branco da galeria e um antigo espaço oficinal ainda repleto de marcas da sua anterior actividade -, que convoca para a sua apreensão elementos recorrentes no trabalho deste autor como sejam a revisitação crítica da modernidade estética, a assunção da frieza e rigor formais como factor de distanciamento do espectador, e a partilha de uma introspecção que aqui se joga num plano de uma confessionalidade irónica.
Este díptico expositivo toca, então, as margens de uma visão pendular da criação, entre o apolíneo e o dionisíaco: à frieza formalista das obras que revisitam ironicamente a abstracção modernista na Galeria, num momento que intitulou a partir de uma citação de Thomas Bernhard “O frio aumenta com a claridade”, contrapõe-se o excesso informalista e hipoteticamente confessional da instalação na Oficina, que retoma um anterior título seu “O império do aborrecimento”, agora com um II, indicativo, justamente, desse propósito de continuidade.
Assim, como nos jogos de sedução, Burmester propõe-nos uma experiência que tanto apela a uma partilha e comunhão estéticas, como no momento seguinte se impõe como barreira erigida a partir de uma estrutura onde predomina a ironia e a deceptividade.
Qualquer experiência modifica a consciência. Seja ele subliminar ou traumático, não há nenhum acontecimento psíquico ou físico-material que não altere o complexo da nossa identidade. No fluxo do instantâneo, o impacte, como o das partículas eléctricas que atravessam o nosso planeta, é infinitésimo ou passa despercebido. Mas a existência pessoal é um processo, encontra-se em perpétua mudança. Devido ao seu carácter desinteressado e amiúde completamente inesperado – o quadro que vemos de repente na parede de um museu, a melodia que inadvertidamente se apodera do nosso movimento físico ou memória, o poema ou romance ou peça de teatro que quase nos embosca -, o encontro, a colisão entre a consciência e a forma significante, entre a percepção e o estético, é dos mais poderosos.
George Steiner, Errata: Revisões de Uma Vida, Lisboa, Relógio D’Água, pgs. 34/35.
Como refere Steiner, o poder do encontro estético pode revelar-se como um dos mais poderosos na construção da nossa identidade. Burmester joga com o poder desse encontro ao propor uma série de trabalhos na Galeria que convocam, num fluxo de associações imediatas, dois tipos de realidades perfeitamente distintas e conceptualmente irreconciliáveis: a grande narrativa da abstracção geométrica da modernidade clássica por um lado, e o minimalismo, por outro. Assim sendo, estes constituem um oximoro, onde sentidos opostos que parecem excluir-se mutuamente num determinado contexto acabam por reforçar uma expressão: aqui a da deceptividade, exactamente na medida em que afastam o espectador de uma leitura que lhe seja mais convencional. A ambiguidade formal dos trabalhos de parede ancora-se imediatamente no seu estatuto híbrido: remetendo claramente para a tradição pictórica, a sua presença objectual vê-se reforçada pela abstenção no uso dos meios convencionais da pintura, para se imporem como construções – mais um referente, o construtivismo do início do século XX -, de carácter industrializado. Se as peças de chão remetem para a tradição minimalista, carecem, apesar de tudo, da aridez determinante da percepção espacial que os trabalhos desta corrente reclamavam. Ou seja, são demasiado atraentes, no sentido em que são presenças demasiado auto-referentes para se afirmarem como aquilo a que os minimalistas se referiam como “nem monumento, nem ornamento” (R. Morris). Ao convocar dinâmicas interpretativas tão diversas, nas quais, como se disse, podemos pensar em Mondrian, nos construtivistas russos, nos minimalistas ou, inclusivamente, no pós-modernismo do neo-geo, Burmester retira qualquer tipo de carga simbólica a estes objectos, atirando-os para o espaço indeterminado da recepção formalista pura e dura, numa espécie de comentário virado do avesso a uma impossibilidade hermenêutica que só reforça a frieza e a distância que eles demarcam num território que ele vai meticulosamente delimitar. Numa entrevista que me concedeu ainda no final do século passado para a revista Hei! o autor abordava com claridade cristalina este tipo de delimitação voluntária na interacção com o espectador: “[...] a chamada auto-expressividade encontra[-se] toda ela praticamente exposta e usufruída banalmente. Com a valorização dos sentimentos no romantismo – a tristeza, a alegria, a angústia – descobre-se um novo conceito de arte; quando tudo isto é de tal maneira banalizado, nomeadamente pelos meios de comunicação, onde as pessoas expõem as suas angústias e as suas tristezas, ou onde a sua privacidade é constantemente violentada – toda a gente tem direito a cinco minutos de glória, como dizia o Warhol, mas o que se passa hoje em dia é que toda a gente é violentada pelos cinco minutos de glória... – a auto-expressividade encontra-se, de facto, exposta e banalizada. Mantendo uma auto-expressividade de um modo retraído, faço-o por um processo em que vou, tal como tu e outros já escreveram a meu propósito, oferecer uma energia, e de repente chego a um ponto em que corto essa energia e o espectador sente precisamente isso. Repara que normalmente dizem que a minha obra não pode ser usufruída, não pode ser penetrada, o que nem sempre é literalmente assim; mas admito porém, que muitos dos meus trabalhos têm um carácter estático ou inibitório que tem a ver com esse tal corte de energia. Acrescentaria a propósito desta questão aquilo que o Baudrillard dizia sobre a cultura ocidental, isto é, que esta se foi construindo a partir do desejo, e com o desejo se foi criando, conquistando, até se tornar omnipresente. Ora neste final de século já não se conquista, apenas se seduz, e o que estamos a realizar define-se pela construção de jogos e mais jogos de sedução.”
Ao atentarmos nestas palavras penetramos naquilo que é verdadeiramente singular neste artista: a capacidade de criar mecanismos de aproximação e distanciamento perante o espectador que se traduzem enquanto permanentes jogos de sedução nos quais o que se revela mais determinante é o próprio processo e não tanto uma qualquer intencionalidade determinista.
É nesse sentido que o segundo volante desta exposição é particularmente eficaz. Aqui, ou seja, no espaço da Oficina, Burmester joga na teatralização absoluta do espaço como factor de envolvimento do espectador num universo que muito claramente o convida a mergulhar num jogo de memórias introspectivas e auto-referenciais. As imaculadas superfícies coloridas que pontuam o espaço constituem um primeiro momento de activação de uma memória referente ao seu trabalho anterior (pessoalmente, não pude deixar de rememorar a sua espectacular intervenção na exposição “Sortilégios” na Alfândega do Porto no início dos anos noventa). A instalação central não podia estar mais nos antípodas da mencionada frieza apolínea das peças da galeria. Aqui, no interior de um círculo de fogo, suspende-se sobre um círculo evocativo de uma terra matricial um enorme armário que recolhe no seu interior elementos diversos, todos eles associáveis ao passado recente do artista: dos livros que terá lido, ao whisky que terá consumido, de pequenos fragmentos de obras recentes a resquícios coloridos do material constitutivo das obras expostas na galeria, tudo remete para um enclausuramento de um passado que assume uma dimensão fantasmática. Burmester sublinha uma vez mais a ideia de uma eventual proximidade à sua “persona”, ao partilhar este sonho tornado palpável com o espectador. No entanto, este movimento de aproximação, este gesto sedutor, acaba por esmorecer perante a força da própria obra que, na sua apreensão final, retira qualquer importância aos dados anedóticos e de pequena história que possam causar essa aproximação inicial. No fim permanece uma estranha sensação de incómodo pela solidão daquele objecto flutuante, visível mas literalmente inalcançável. E então começamos a sentir que, no fundo, este artista detém uma particular capacidade de manipulação do espectador. Determina-lhe estados de espírito que vão da indiferença à adesão instintiva, da hipotética partilha de memórias comuns ao afastamento arrogante de uma memória que finalmente se cristaliza como única, idiossincrática e, nessa medida, não comungável.
A presente exposição é uma exposição que revela um autor maduro, capaz de uma auto-ironia rara no nosso contexto, mas que aí ocupa um lugar muito particular, algo que a continuidade do seu trabalho não deixa de evidenciar: a de um manipulador e a de um sedutor esclarecido, criador de objectos que tanto se estruturam a partir do mais rigoroso formalismo, quanto se constroem a partir da mais intencional espectacularidade teatral.
Miguel von Hafe Pérez
Fevereiro 2007
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