quarta-feira, 27 de junho de 2007

Editorial

Na realidade de hoje em dia, o blog é fundamental para os consumidores /espectadores ávidos de informação, por ser um instrumento dinâmico e rapidamente actualizável e não é substituível pelo site. No âmbito de um trabalho para uma Pós Graduação em Arte Contemporânea, decidimos fazê-lo sobre Gerardo Burmester, marco referencial da Arte Contemporânea Portuguesa dos anos 80 e 90 e um dos percursores da Performance em Portugal em conjunto com Albuquerque Mendes, hoje por muitos esquecido e distanciado das fragilidades e da pequenez deste meio.
Não pretendemos de todo com este blog, arrumar Gerardo Burmester numa prateleira virtual ou dar a possibilidade de o meter na pasta dos favoritos de outrora
[1], mas partilhar e relembrar os bloggers de quem foi e é este grande artista e dar-lhe visibilidade na blogosfera portuguesa, que transborda de blogs políticos, jurídicos e jornalísticos e onde os blogs de arte e de artistas rareiam.
Recentemente fez uma exposição em dois espaços completamente distintos no Soho portuense; um espaço é o White Cube da Galeria Fernando Santos e o outro a Oficina da mesma galeria situada numa velha garagem de automóveis degradada; este dítpitco expositivo será objecto da nossa análise crítica no próximo capítulo.
A obra de Burmester seduz, fascina, intimida, convidando todos os olhares que a visionam a ir mais além, nunca permitindo, no entanto, chegar ao seu verdadeiro dizer artístico, tão magnificamente espelhado por ele.A sua obra não representa objectos ou esculturas com compromisso ilusionista ou de forçosa interpretação, antes nos propõem um novo modo de ver e perceber o mundo.

[1] Vd. GEIRINHAS, Alice; RIBEIRO, Isabel – Perspectiva Actual. www.artecapital.net/ Art Blogs Parte 2

Uma conversa com Gerardo Burmester em 21.06.2007

Claudia Cudell: Depois de cinco anos sem expores nenhuma obra, fizeste este díptico expositivo, citando as palavras de Miguel von Hafe Pérez: O Frio aumenta com a Claridade e o Império do Aborrecimento. 2ª Parte. Denota-se nesta exposição um amadurecer do acumular memórias destes teus últimos 5 anos, bem como o contraste, sempre presente nas tuas obras, de conforto/desconforto e de proximidade/distanciamento. Estas sensações opostas são como um fio condutor na tua obra. Concordas comigo?

Gerardo Burmester: Sim, concordo, apesar de que o acumular de memórias está muito mais presente na instalação, do que propriamente na exposição. Na instalação assumo esse processo todo, é como se fosse a minha casa metida dentro de um armário, como aliás já te falei uma vez. Quanto aos outros trabalhos, O Frio aumenta com a Claridade trata-se da objectualização da pintura, com um lado bastante frio. Admito que haja referências a trabalhos anteriores, o lado frio, o da autoria, um certo distanciamento até pela própria frieza, mas ao utilizar materiais bastante diferentes do que o que utilizei noutros tempos, abre um caminho para um novo processo, há pistas para um novo trabalho.

CC:
Falas-te na autoria – as tuas obras sempre demonstraram um pouco esse por em causa um dos paradigmas da modernidade, nomeadamente esse da autoria, isto é, muitas das obras são executadas pelo marceneiro ou pelo estofador, e neste caso, os acrílicos também são feitos por outra pessoa.

GB: Nem todos os meus trabalhos são feitos assim, mas os que são, têm a minha expressividade com o gesto, com a cor... mas não faço disso nenhuma ideologia.

CC: O Fernando convidou-te para fazeres uma exposição na Galeria Fernando Santos, e foi condição sine qua non fazer simultaneamente a instalação na Oficina? Duas expressões plásticas aparentemente opostas, uma formal e outra conceptual; diria quase que uma é a forma e a outra o conteúdo...

GB: Não, não foi condição sine qua non. O Fernando propôs me também fazer a instalação. Não, não vejo isso tanto assim. No O Império do Aborrecimento denota-se mais o meu lado expressivo, há um certo sentido de autoria, de auto-retrato, como referi há bocado, é a minha casa empacotada. Portanto é mais visível todo esse processo do interior, das angústias... Na Claridade aumenta com o Frio dá-se precisamente o contrário, alias uma das críticas referiu que eu fui excessivamente formalista. Eu não vejo isso assim. Eu quis utilizar a pintura como objecto, que é uma atitude conceptual. A minha ideia da objectualização da pintura foi a de utilizar as cores, isto é, os materiais com diversas cores fluorescentes e os cortes, que resultaram numa sobreposição de cores, transformadas em objectos. O me fascinou neste processo é lado muito frio, aparentemente muito frio. Digamos que é o desencanto novamente. A minha aproximação à pintura é por um processo desencantado, porque nem sequer é expressiva. Eu não pintei, não utilizei um pincel...É só por esse sentido que vejo que uma é mais formal. As pistas que recebi desta exposição para novos caminhos vieram dos acrílicos...A instalação é muito evidente.

CC: Sem dúvida. Para quem conhece a tua obra, percebe, ao entrar no O Império do Aborrecimento. 2ª Parte., que ali está a 2ª Parte, pois a 1ª foi em 1981, na então denominada Galeria Roma e Pavia, onde expuseste uma série de imagens de partes do teu corpo. Desta vez o auto-retrato é mais evidente, como tu próprio referis-te, um O Meu Lugar diferente?

GB: A ideia é esse mesmo. É o meu retrato, é o meu quarto. E as pessoas perceberam isso, pois é bastante evidente, quase um exagero. Na 1ª Parte expus polaróides de partes do meu corpo, nesta exponho objectos que utilizo diariamente, tais como dvd´s, livros, malas que tenho, garrafas de Whisky... É um espelho meu. Digamos que expor um armário com coisas pessoais lá dentro, evidencia o auto-retrato. Digamos que é o exagero, potencializado ao máximo essa situação, mais do que as polaróides. Como o Miguel escreveu muito bem, o Apolo e o Dionísio, o contraste assumido.

CC:
Há marcas visíveis da tua identidade em toda a tua obra, mas nesta é muito acentuada.
Estás de costas, como o armário, onde o conteúdo não é visível? Estás de portas fechadas? Desencantaste-te com a vida? Com o meio artístico?
Numa entrevista em Junho do ano passado, tinhas me dito que o armário não ia ter portas abertas provavelmente, ou nem ia ter portas....


GB: Ás vezes o espectador quer forçosamente contextualizar momentos, que não são contextualizáveis.
Sim ... Lembro-me de ter falado contigo, quando estava a preparar esta exposição, e a ideia não era ter um armário, mas vários. Aliás, cheguei a comprar doze armários, mas não eram aquele. Quando vi aquele armário, percebi imediatamente que a parte formal dos outros não ia funcionar tão bem como aquele. Aquele armário tem uma presença, uma dignidade, que os outros não têm. Mesmo assim cheguei a montar os outros, aos quais tirei as portas, para por os mesmos acrílicos nos fundos e dos lados, uma espécie de construção construtivista, de onde saiam placas acrílicas amarelas, vermelhas...Mas isso também não funcionou, por questões técnicas; os acrílicos com o tempo começavam a dobrar. Para responder à tua pergunta, uma porta até está fechada e a outra está entreaberta. Mas é uma interpretação...

CC: Há, na minha opinião, dois momentos na tua instalação. Um primeiro momento quando se entra e só se vê os jogos de luz, efeito das chapas iluminadas e depois aquele volume suspenso, que não apercebe logo o que é. Depois, há um segundo momento, que é o impacto arrebatador do visionar o conteúdo do armário. Era isso que pretendias?

GB: Sim é isso. Por um lado a barreira, por outro o efeito surpresa...

CC:
O teu auto-retrato...

CC: Miguel von Hafe Pérez no seu texto sobre a tua obra menciona dois tipos de realidades completamente distintas: a narrativa da abstracção geométrica e o aparente minimalismo. Esta tua abstracção geométrica faz nos pensar em Mondrian. O Miguel chama-lhe uma espécie de comentário virado ao avesso, que achas disso?

GB: É uma boa ideia. O geométrico faz a associação ao modernismo. Alguém me disse que esta exposição era um pouco Pop, o que não está errada de todo. Podia ser Pop, se as formas não fossem cortadas geometricamente; não o conteúdo da Pop, mas a parte formal da Pop, com as suas cores apelativas e os elementos primários. Para mim só a obra aberta é que faz sentido, aquela que Ecco refere. A obra fechada não tem sentido algum.

CC: A matéria sempre teve um grande importância no teu trabalho, mais uma vez nestas duas exposições também o contraste das matérias, o orgânico na instalação e o acrílico/plexiglass na exposição da galeria. Porque escolhes-te o acrílico, uma matéria que nunca tinhas utilizado, desta vez?

GB: Nem sei muito bem. Já tinha feito experiências com acrílicos opacos, que eu ia colar. Estes são fluorescentes e portanto requerem muito mais cuidados, porque têm de ser aparafusados. Essas experiências levaram-me a esta experiência de sobrepô-los e criar estes efeitos de luz. Todos os fundos destes trabalhos são em acrílico branco, para dar um melhor e mais puro efeito às cores sobrepostas a seguir. O acrílico final, aquele que está a proteger o trabalho, parece um vidro, mas é também um acrílico colorido, que faz parte da obra. Este não toca nas outras chapas, tem uma distância para dar profundidade ao trabalho.
Gosto desse lado “Pop” e não modernista do plexiglass. Depois com o corte é que se vê a fluorescência do material. Nem todas as placas são fluorescentes.

CC: O que significa o título O Frio aumenta com a Claridade? O frio é o frio dessa matéria?

GB:Essa frase é tirada de um texto de Tomas Bernhard, um niilista austríaco, que deu muitas conferências sobre politica.
O título tem a ver com a racionalidade e com o frio dos acrílicos, claro. A ideia é que a frieza do racional facilita ver-se com mais claridade, com maior consciência. Ao mesmo tempo joga com a palavra frio, que tudo tem a ver com a exposição. A claridade também tem a ver com a claridade dos acrílicos.

CC: Sempre gostas-te de jogar com as palavras e os títulos, quer de exposições quer das obras. Davas títulos muito emotivos a obras secas e duras.

GB: Exactamente. Outras, não neste caso, exagerava de tal forma com o título que até desviava o tema daquilo que pretendia dizer, provocava nesse sentido.

CC: Como te sentes em relação à crítica em Portugal, um meio pequeno que não demonstra maturidade crítica, senão como se explicaria não ter havido uma recenssão critica em relação a esta tua exposição?

GB: Essa pergunta podes fazê-la à crítica.

Análise crítica a “O Império do Aborrecimento. 2ª Parte”

Gerardo Burmester iniciou a sua carreira como performer, essencialmente, na década de 70, mais precisamente em 1976, no pós 25 de Abril. Juntamente com Albuquerque Mendes foi um dos percursores da performance em Portugal, fazendo performance também em França onde viveu em Paris durante um ano; um ano de vivência fundamental para a sua carreira artística. Do seu percurso destacam-se participações em mostras realizadas, em espaços, tais como o Museu Amadeo de Souza Cardoso em Amarante em 1990, o CCB em Lisboa em 1994 e a Fundação de Serralves no Porto em 1998.
Mais tarde desenvolve uma pintura de cariz figurativo, que questionava géneros como a natureza-morta e a paisagem, tendo fortes referências do pintor romântico Caspar David Friedrich. As suas naturezas-mortas são uma espécie de caricatura da função decorativa desse género de pintura. Essa ironia e provocação do artista denotam-se ao longo de toda a sua obra, perpetuando-se nos seus Objectos de Parede[1], nos seus Móveis sem Função[2] e nas instalações, que fazia simultaneamente nesta fase.
Com estes trabalhos faz questão de demonstrar que não é o escultor, nem o artesão destes objectos, que conjugam a especialidade do marceneiro e do estofador. Não há assinatura, não há decoração, há luxo e beleza.Na sua obra de grande densidade conceptual, Burmester evoca sempre o luxo e o esplendor das formas, suscitando no espectador, uma imediata sensação de conforto e uma aparente fácil interpretação da sua obra, mas, rapidamente o observador se apercebe que a obra não o permite ir mais além dos sentidos. Ela é impenetrável e ininteligível, a partir de determinado momento. O fruidor sente um desconforto e distanciamento; é este contraste, que é quase como um fio condutor nas suas instalações, também presente no Império do Aborrecimento. 2ª Parte, instalação realizada na Oficina da Galeria Fernando Santos, no Porto em Janeiro de 2007, durante a sua exposição O Frio Aumenta com a Claridade na mesma galeria, onde Burmester expõe chapas de acrílicos de várias cores, genialmente sobrepostas, criando efeitos de luz e de frieza.
Estas duas exposições de expressões plásticas opostas complementam-se, sendo um o prolongamento da outra.
Apesar de se considerar um pintor, é na instalação que Gerardo se expõe e se revê. Gerardo Burmester não só questiona as modalidades tradicionais da arte, mas também questiona o tempo, questionando assim o homem desse tempo e a interacção com a própria obra. Faz nos reflectir sobre conceitos, como o da reprodutibilidade de Walter Benjamin[3], que por principio a obra de arte sempre foi reprodutível, e se muitos artistas aderem a essa reprodução, outros existem, que se vinculam ao acto de criação na sua unicidade. Não ofertam a aura do exercício, pois à priori conhecem o seu desfecho. A reprodução, ou a era de reprodutibilidade, desloca do lugar de ocorrência único, uma multiplicidade de lugares.
A instalação tem, na nossa opinião, dois momentos; um primeiro momento quando se entra e apenas percepcionamos as chapas de alumínio coloridas iluminadas, que reflectem para as paredes degradadas, efeitos de luz. Depois vemos um armário suspenso, que como uma barreira, está de costas para nós.


Instalação O Império do Aborrecimento.2.ªParte
De Gerardo Burmester realizada na Oficina da Galeria Fernando
Santos, Porto. Janeiro de 2007. Fotografia de Claudia Cudell



Instalação O Império do Aborrecimento.2.ªParte
De Gerardo Burmester realizada na Oficina da Galeria
Fernando Santos, Porto. Janeiro de 2007.
Fotografia de Claudia Cudell

Por cima de um tapete em forma de círculo, feito de panos brancos embebidos em gesso e cola, que só per si já uma obra de arte, está suspenso um enorme e pesado volume; onde mais uma vez o artista contrapõe a dualidade: A do peso leve e por outra, a de suspender algo que é para estar bem assente no chão.
O segundo momento é um impacto arrebatador, o de visionar o conteúdo do mesmo. O panorama é belíssimo. O ambiente é de silêncio.
São o acumular de memórias dos últimos cinco anos do artista: duas grandes ânforas aludem a uma instalação passada, resmas de papel, livros, resquícios dos acrílicos da obra que está exposta na galeria, garrafas de Whisky, antigos trabalhos, CDs e DVDs são o conteúdo deste armário. Criteriosamente iluminados os vários compartimentos do armários, realçam umas partes mais coloridas e com tons de vermelho, à semelhança de outras instalações, dando um ar de comodidade incómoda. É um O Meu Lugar[4] um pouco diferente. O observador tem sensações contraditórias, pois se sente por um lado uma sensação agradável de calor transmitida pelo anel de chamas e pelos tons avermelhados do conteúdo do armário, ao mesmo tempo tem sensações de desconforto e frio, por não conseguir comunicar e abrir as portas do armário, que o artista deixou encostadas. O tema é o de incomunicabilidade.


Instalação O Império do Aborrecimento.2.ªParte
De Gerardo Burmester realizada na Oficina da Galeria
Fernando Santos, Porto. Janeiro de 2007.
Fotografia de Claudia Cudell

À semelhança de O meu Lugar de Gerardo Burmester esta obra tem marcas visíveis da sua identidade. Este artista sempre demonstrou em muitas obras indícios de uma identidade autobiográfica e uma enorme capacidade de manipular o observador.
Se por um lado existem artistas que fazem percursos completamente voltados e agressivamente direccionados para o mundo dos outros, no limite quase que organizam verdadeiras campanhas de marketing onde tudo é revelado, por outro também existem aqueles artistas que habitam o seu espaço, a sua identidade, jogando com situações não existenciais, construindo para si e com grandeza e consistência, o seu trabalho.
Esta situação não desqualifica, não está aquém do rigor estético, está envolta sim, num jogo de sedução que o artista faz de si para si e que dificilmente é descodificado.
Eventualmente e aquando da criação que surge de um modo espontâneo, traduz o seu modos vivendi, é o Leitmotiv, que faz parte do exercício de criação que apenas ao próprio pertence, visível ou não, mas que acrescenta ao seu trabalho o que ele é. Isto surge na grandiosa obra de Gerardo Burmester.


[1] Objectos, denominados Maria-Marias são aproximações a esculturas, na medida em que são tridimensionais, mas que para o artista continuam a ser pintura, pela maneira como este utiliza o material. Em madeira ou ferro, de formas quadrangulares, as peças são forradas a couro, ou deixado o material à vista. O acabamento dos materiais e perfeito e luxuoso e o material de excelente qualidade, reafirmam o rigor estético que questiona e provoca os valores da utilidade e da qualidade estética.
[2] Esculturas, por nós denominadas Móveis sem Função dado serem móveis impossíveis, Numa primeira análise parecem móveis comuns ao espectador, mas observados mais atentamente são falsos móveis com funcionalidades inexistentes.

[3] BENJAMIN, Walter – Sobre a Arte, Técnica e Política. Lisboa: Relógio de Água, 1992. p.75.
[4] Instalação realizada 1997 na Galeria Pedro Oliveira no Porto, onde o artistas expôs numa sala de passagem, o seu sofá gasto pelo tempo e pelo uso, forrado a veludo vermelho, dentro de uma caixa de madeira. Na parte de trás, uma escada, que convida o espectador a aceder ao sofá e calcar o seu lugar. Na parede mais de mil copos de vinho pendurados por um fio de nylon.

Quente sedução no frio da razão de Miguel Von Hafe Pérez

Os processos de legitimação artística enfermam, no nosso país, de um grau de arbitrariedade não negligenciável. Se bem que este fenómeno se estenda a toda a arte contemporânea, em Portugal o risco de tal acontecer acaba por se evidenciar de modo mais agudo exactamente na medida em que o meio não mostra sinais de uma maturidade crítica que lhe permita ficar menos susceptível a fenómenos de moda, de confusão entre aquilo que é uma circunstancial visibilidade acrescida e a coerência de um corpo de trabalho que se situe à margem dessas flutuações de gosto. São inúmeros os casos de autores que viram a sua recepção crítica flutuar mediante uma conjugação de factores externos que os atrai ou repele de um putativo centro gravitacional do gosto dominante. Pensemos no errático percurso de um artista como Eduardo Batarda, várias vezes aclamado como “um dos nossos maiores”, outras esquecido num estranho limbo de não-existência pública, ainda que a sua obra se tenha vindo a construir com rara consistência no nosso panorama. O problema prende-se, essencialmente, com a pequenez do meio: dada a reduzida malha institucional que caracterizou até os anos noventa o nosso circuito, os artistas chegavam a um ponto em que os períodos pós-retrospectiva poderiam significar a entrada em períodos de ressaca em termos de visibilidade, isto é, dava a ideia de que se tinha esgotado um segmento importante daquilo que seriam os seus desígnios de carreira, o que os conduziria a um beco sem saída.
Este tipo de situação não tem, em rigor e evidentemente, nada a ver com a qualidade do trabalho, com a sua pertinência estética ou com a posição que vai construindo na interior da sua própria evolução. Servem estes considerandos exclusivamente para enquadrar uma dessas situações estranhas que tem a ver com o artista cuja exposição agora se apresenta. Na verdade, Gerardo Burmester manteve uma presença regular e singular no circuito nacional desde as primeiras aparições ainda nos anos setenta, o que lhe valeria uma justificada presença em colecções institucionais, em representações nacionais no estrangeiro ou uma igualmente merecida retrospectiva em Serralves. Contudo, foi notório um decréscimo de actividade nos últimos anos, a que correspondeu uma menor presença na discussão pública da contemporaneidade artística (sendo difícil determinar com exactidão se a primeira é consequência imediata da segunda ou vice-versa; a verdade é que este autor sempre cultivou um certo distanciamento perante as fragilidades do meio que alguns qualificariam como atitude de arrogância extrema, mas que nele corresponde a algo que determina inclusivamente as suas opções estéticas).
É neste contexto que devemos pensar a presente proposta expositiva de Gerardo Burmester. Trata-se, de facto, de um díptico expositivo distribuído por dois espaços completamente distintos na sua tipologia – o quadrado branco da galeria e um antigo espaço oficinal ainda repleto de marcas da sua anterior actividade -, que convoca para a sua apreensão elementos recorrentes no trabalho deste autor como sejam a revisitação crítica da modernidade estética, a assunção da frieza e rigor formais como factor de distanciamento do espectador, e a partilha de uma introspecção que aqui se joga num plano de uma confessionalidade irónica.
Este díptico expositivo toca, então, as margens de uma visão pendular da criação, entre o apolíneo e o dionisíaco: à frieza formalista das obras que revisitam ironicamente a abstracção modernista na Galeria, num momento que intitulou a partir de uma citação de Thomas Bernhard “O frio aumenta com a claridade”, contrapõe-se o excesso informalista e hipoteticamente confessional da instalação na Oficina, que retoma um anterior título seu “O império do aborrecimento”, agora com um II, indicativo, justamente, desse propósito de continuidade.
Assim, como nos jogos de sedução, Burmester propõe-nos uma experiência que tanto apela a uma partilha e comunhão estéticas, como no momento seguinte se impõe como barreira erigida a partir de uma estrutura onde predomina a ironia e a deceptividade.

Qualquer experiência modifica a consciência. Seja ele subliminar ou traumático, não há nenhum acontecimento psíquico ou físico-material que não altere o complexo da nossa identidade. No fluxo do instantâneo, o impacte, como o das partículas eléctricas que atravessam o nosso planeta, é infinitésimo ou passa despercebido. Mas a existência pessoal é um processo, encontra-se em perpétua mudança. Devido ao seu carácter desinteressado e amiúde completamente inesperado – o quadro que vemos de repente na parede de um museu, a melodia que inadvertidamente se apodera do nosso movimento físico ou memória, o poema ou romance ou peça de teatro que quase nos embosca -, o encontro, a colisão entre a consciência e a forma significante, entre a percepção e o estético, é dos mais poderosos.
George Steiner, Errata: Revisões de Uma Vida, Lisboa, Relógio D’Água, pgs. 34/35.

Como refere Steiner, o poder do encontro estético pode revelar-se como um dos mais poderosos na construção da nossa identidade. Burmester joga com o poder desse encontro ao propor uma série de trabalhos na Galeria que convocam, num fluxo de associações imediatas, dois tipos de realidades perfeitamente distintas e conceptualmente irreconciliáveis: a grande narrativa da abstracção geométrica da modernidade clássica por um lado, e o minimalismo, por outro. Assim sendo, estes constituem um oximoro, onde sentidos opostos que parecem excluir-se mutuamente num determinado contexto acabam por reforçar uma expressão: aqui a da deceptividade, exactamente na medida em que afastam o espectador de uma leitura que lhe seja mais convencional. A ambiguidade formal dos trabalhos de parede ancora-se imediatamente no seu estatuto híbrido: remetendo claramente para a tradição pictórica, a sua presença objectual vê-se reforçada pela abstenção no uso dos meios convencionais da pintura, para se imporem como construções – mais um referente, o construtivismo do início do século XX -, de carácter industrializado. Se as peças de chão remetem para a tradição minimalista, carecem, apesar de tudo, da aridez determinante da percepção espacial que os trabalhos desta corrente reclamavam. Ou seja, são demasiado atraentes, no sentido em que são presenças demasiado auto-referentes para se afirmarem como aquilo a que os minimalistas se referiam como “nem monumento, nem ornamento” (R. Morris). Ao convocar dinâmicas interpretativas tão diversas, nas quais, como se disse, podemos pensar em Mondrian, nos construtivistas russos, nos minimalistas ou, inclusivamente, no pós-modernismo do neo-geo, Burmester retira qualquer tipo de carga simbólica a estes objectos, atirando-os para o espaço indeterminado da recepção formalista pura e dura, numa espécie de comentário virado do avesso a uma impossibilidade hermenêutica que só reforça a frieza e a distância que eles demarcam num território que ele vai meticulosamente delimitar. Numa entrevista que me concedeu ainda no final do século passado para a revista Hei! o autor abordava com claridade cristalina este tipo de delimitação voluntária na interacção com o espectador: “[...] a chamada auto-expressividade encontra[-se] toda ela praticamente exposta e usufruída banalmente. Com a valorização dos sentimentos no romantismo – a tristeza, a alegria, a angústia – descobre-se um novo conceito de arte; quando tudo isto é de tal maneira banalizado, nomeadamente pelos meios de comunicação, onde as pessoas expõem as suas angústias e as suas tristezas, ou onde a sua privacidade é constantemente violentada – toda a gente tem direito a cinco minutos de glória, como dizia o Warhol, mas o que se passa hoje em dia é que toda a gente é violentada pelos cinco minutos de glória... – a auto-expressividade encontra-se, de facto, exposta e banalizada. Mantendo uma auto-expressividade de um modo retraído, faço-o por um processo em que vou, tal como tu e outros já escreveram a meu propósito, oferecer uma energia, e de repente chego a um ponto em que corto essa energia e o espectador sente precisamente isso. Repara que normalmente dizem que a minha obra não pode ser usufruída, não pode ser penetrada, o que nem sempre é literalmente assim; mas admito porém, que muitos dos meus trabalhos têm um carácter estático ou inibitório que tem a ver com esse tal corte de energia. Acrescentaria a propósito desta questão aquilo que o Baudrillard dizia sobre a cultura ocidental, isto é, que esta se foi construindo a partir do desejo, e com o desejo se foi criando, conquistando, até se tornar omnipresente. Ora neste final de século já não se conquista, apenas se seduz, e o que estamos a realizar define-se pela construção de jogos e mais jogos de sedução.”
Ao atentarmos nestas palavras penetramos naquilo que é verdadeiramente singular neste artista: a capacidade de criar mecanismos de aproximação e distanciamento perante o espectador que se traduzem enquanto permanentes jogos de sedução nos quais o que se revela mais determinante é o próprio processo e não tanto uma qualquer intencionalidade determinista.
É nesse sentido que o segundo volante desta exposição é particularmente eficaz. Aqui, ou seja, no espaço da Oficina, Burmester joga na teatralização absoluta do espaço como factor de envolvimento do espectador num universo que muito claramente o convida a mergulhar num jogo de memórias introspectivas e auto-referenciais. As imaculadas superfícies coloridas que pontuam o espaço constituem um primeiro momento de activação de uma memória referente ao seu trabalho anterior (pessoalmente, não pude deixar de rememorar a sua espectacular intervenção na exposição “Sortilégios” na Alfândega do Porto no início dos anos noventa). A instalação central não podia estar mais nos antípodas da mencionada frieza apolínea das peças da galeria. Aqui, no interior de um círculo de fogo, suspende-se sobre um círculo evocativo de uma terra matricial um enorme armário que recolhe no seu interior elementos diversos, todos eles associáveis ao passado recente do artista: dos livros que terá lido, ao whisky que terá consumido, de pequenos fragmentos de obras recentes a resquícios coloridos do material constitutivo das obras expostas na galeria, tudo remete para um enclausuramento de um passado que assume uma dimensão fantasmática. Burmester sublinha uma vez mais a ideia de uma eventual proximidade à sua “persona”, ao partilhar este sonho tornado palpável com o espectador. No entanto, este movimento de aproximação, este gesto sedutor, acaba por esmorecer perante a força da própria obra que, na sua apreensão final, retira qualquer importância aos dados anedóticos e de pequena história que possam causar essa aproximação inicial. No fim permanece uma estranha sensação de incómodo pela solidão daquele objecto flutuante, visível mas literalmente inalcançável. E então começamos a sentir que, no fundo, este artista detém uma particular capacidade de manipulação do espectador. Determina-lhe estados de espírito que vão da indiferença à adesão instintiva, da hipotética partilha de memórias comuns ao afastamento arrogante de uma memória que finalmente se cristaliza como única, idiossincrática e, nessa medida, não comungável.
A presente exposição é uma exposição que revela um autor maduro, capaz de uma auto-ironia rara no nosso contexto, mas que aí ocupa um lugar muito particular, algo que a continuidade do seu trabalho não deixa de evidenciar: a de um manipulador e a de um sedutor esclarecido, criador de objectos que tanto se estruturam a partir do mais rigoroso formalismo, quanto se constroem a partir da mais intencional espectacularidade teatral.

Miguel von Hafe Pérez
Fevereiro 2007

Recenssão crítica ao texto "Quente sedução no Frio da Razão" de Miguel von Hafe Pérez

O autor deste texto é Miguel von Hafe Pérez, crítico de arte e comissário de várias exposições e actualmente o responsável pelo projecto Anamnese da Fundação Ilídio Pinho, onde integra o Conselho das Artes que está a constituir uma colecção de arte contemporânea portuguesa.
O autor é grande conhecedor da obra de Gerardo Burmester escreveu diversos textos e artigos sobre este artista, entre os quais esta recessão crítica sobre a sua última exposição que está publicada no catálogo. São estas as razões que me levaram a escolher este recenssão.
A abordagem deste texto é desenhada por Miguel von Hafe Pérez em três escalas. Inicia por relatar um quadro sociológico em que obra e artista interagem e intervêm, passando para a esfera da Estética, onde, citando Steiner, o autor reforça que a consciência individual interfere em termos de identidade da própria obra. Estas duas etapas têm o seu desfecho com uma inclusão no processo que a Estética teve ao longo da Historia da Humanidade, concretamente da Historia da Arte.
Já o título do texto é esclarecedor da dualidade existente na obra de Burmester em geral, e desta exposição em particular.
O autor faz uma primeira abordagem sociológica, na medida em que alerta o leitor para o nosso meio artístico que sem maturidade crítica só é capaz de apreciar a arte dentro de aspirações que lhe são contemporâneas, tais como a moda. Esqueceram este artista que tem uma posição singular no panorama artístico contemporâneo português, bem como a sua obra, de rara coerência, rotularam-no de arrogante e crucificaram-no por se ter distanciado algum tempo do nosso meio.
Como em muitos textos de Miguel von Hafe Pérez sobre este artista, o autor aborda a ironia e a deceptividade presente em toda a sua obra. Essa ironia vai-se processar sobre os sinais do tempo. Esta ironia que Gerardo Burmester trabalha é uma ironia que já vem da sua obra dos anos 70, no pós 25 de Abril, onde Burmester citava ironicamente uma portugalidade, isto é, um D. Sebastião ou a bandeira nacional de um Portugal limitado à suas próprias obsessões. Para o autor do texto, mais do que repor narrativas mitificantes, Burmester ao utilizar esta ironia impõe um silêncio sobre o seu trabalho, que a torna incomunicável. Ele mantém uma relação irónica e critica com a própria contemporaneidade e desconstroi alguns dos seus paradigmas máximos, logo pelo facto de trabalhar materiais luxuosos e exuberantes e ainda por muitas das vezes não os trabalhar manualmente.
A deceptividade segundo o autor afasta o espectador de uma interpretação da obra, na medida em que os objectos, neste caso os acrílicos, convocam uma emoção, uma aparente fácil leitura, que depois não permite a inteligibilidade da mesma.
A palavra oximoro utilizada pelo autor reforça as duas expressões plásticas opostas, a da exposição dos acrílicos e a da instalação e ao mesmo tempo traduz ao leitor a dualidade também existente na exposição em si, entre os acrílicos e as peças de chão.
Como a própria definição linguística da palavra o diz, o oximoro harmoniza dois conceitos opostos numa só expressão, formando uma terceira que depende da interpretação do leitor. Burmester consegue – o e o autor também.
O leitor compreende a eficácia da exposição, que joga com este Apolo e Dionísio. Enquanto que as sobreposições dos acrílicos frios, formais e apolíneos remetem para a conceptualidade deste material, que lhe confere uma dimensão profunda, fechada sobre si própria. Na instalação o ambiente é de prazer sensorial, através das cores quentes e das formas arredondadas, que nos levam a crer que há uma fácil interpretação da obra, mas rapidamente o observador se apercebe que a obra não permite ir mais alem dos sentidos, ela não comunica. Este contraste do conforto / desconforto distanciam o fruidor.
Na abordagem historiográfica, o autor menciona a relação com determinados movimentos, nomeadamente o Minimalismo, a Abstracção geométrica e o Construtivismo russo; classifica-os mas sem rotular o artista. Von Hafe Pérez considera a que apesar das peças de chão
[1] de Burmester remeterem para o Minimalismo, pela suas formas depuradas e na medida em que o artista utiliza materiais industriais, estes objectos nada têm a ver com este movimento, que reclama o espaço para a leitura da obra, condicionando-o. Miguel von Hafe Pérez evoca ainda os jogos de sedução de Jean Baudrillard. Este afirmava que qualquer exercício artístico era um jogo de sedução, porque a própria relação humana é de poder e de sedução, como dois pólos que se atraiem e se afastam. Isto está presente na obra de Burmester.
O texto apela ainda a uma característica belíssima na obra de Burmester, ao qual o autor chama comentário virado ao avesso, que é o facto de Burmester retirar a carga simbólica aos objectos. Burmester não nos impõe as propriedades dos materiais, nem a utilidades dos objectos; o artista desloca funções, utilidades e experiências. Com a sua obra aprendemos a fruir sem procurar rótulos ou identidades. A sua obra é representada sem compromisso ilusionista ou de forçosa interpretação. E não é a arte um instrumento que pode representar momentos fora do nosso ciclo de experiências e hábitos, de modo a podermos ver as coisas de uma forma desinteressada e sem preconceitos ou hierarquias?
É isto que o autor nos pretende transmitir com este texto. É preciso entender na sua obra o que está por trás de toda a evolução artística. A obra de Gerardo Burmester é um
processo de chegada, e não um ponto de partida. Este díptico expositivo manipula o espectador, baralhando-lhe os sentimentos e as sensações, fazendo-o reflectir sobre a verdadeira essência da arte, na nossa era cada vez mais camuflada e codificada.



[1] Esculturas, por nós denominadas Móveis sem Função dado serem móveis impossíveis, Numa primeira análise parecem móveis comuns ao espectador, mas observados mais atentamente são falsos móveis com funcionalidades inexistentes.